A Eletrificação nas Ferrovias Brasileiras

Rede Mineira de Viação


A crise capitalista de 1929, deflagrada com o famoso crack da Bolsa de Valores de Nova York, teve conseqüências devastadoras para o mundo todo, mas particularmente para os países agrícolas e produtores de matérias primas. Foi o caso do Brasil, onde a crise econômica bateu pesado, provocando inclusive a queda da oligarquia cafeeira com a revolução de 1930. Na esfera ferroviária a situação não foi diferente, uma vez que seu movimento caiu com a depressão na atividade produtiva, afetando diretamente seu faturamento.

No caso das ferrovias que serviam o estado de Minas Gerais o impacto foi particularmente severo, uma vez que sua situação financeira já não era das melhores mesmo durante a euforia econômica da década de 1920. Isso era conseqüência de seu sofrível desempenho operacional, resultado direto de investimentos insuficientes em bons traçados, material rodante e sua manutenção. A multiplicidade de bitolas, traçados sinuosos e pesados e a própria concorrência entre elas geraram uma crônica crise, que se traduzia numa degradação contínua dos serviços prestados. A situação se tornou insustentável no início da década de 1930, e solução encontrada pelo governo do estado de Minas Gerais foi arrendar as ferrovias mineiras controladas pelo governo federal em 1931. Dessa forma, foi constituída a Rede Mineira de Viação - R.M.V., que assumiu o controle da E.F. Oeste de Minas, E.F. Minas e Rio, E.F. Sapucaí, E.F. Muzambinho e Rede Sul Mineira. O povo não deixou por menos, logo encontrando outro significado para a sigla R.M.V.: Ruim Mas Vai...

A primeira providência da administração dessa nova rede ferroviária foi executar obras para tentar melhorar seu desempenho operacional. Esse programa de recuperação herdou a segunda fase da eletrificação da E.F. Oeste de Minas, cujos estudos haviam sido iniciados por essa ferrovia em 1929. Dessa forma, a primeira realização em termos de eletrificação da Rede Mineira de Viação foi a extensão da eletrificação da Oeste de Minas no trecho Augusto Pestana-Minduri, inaugurado em 1936. Na mesma época foram iniciadas as obras da eletrificação de outra linha dessa mesma ferrovia, entre Barra Mansa e Angra dos Reis, mas que logo foram interrompidas.

Somente após o fim da II Guerra Mundial é que a Rede Mineira de Viação retomou o ímpeto de seu processo de eletrificação, agora também como uma iniciativa própria e não como herança de uma companhia absorvida. O grande consumo de lenha da região metropolitana de Belo Horizonte estava elevando o preço do combustível a níveis estratosféricos, onerando bastante as operações das linhas da R.M.V. lá localizadas. Por essa razão os estudos sobre a eletrificação da linha Belo Horizonte-Divinópolis foram iniciados em 1946. Outra razão que tornava a tração elétrica atraente era a possibilidade de se obter energia elétrica da CEMIG - Centrais Elétricas de Minas Gerais, estatal pertencente ao governo do estado de Minas Gerais que, na época, ainda era o arrendatário da R.M.V.

Contudo, a eletrificação só surgiu como possibilidade concreta após a promulgação da lei n° 272, de 10 de abril de 1948, que autorizou a captação de recursos para o reaparelhamento das ferrovias brasileiras. Os trabalhos de eletrificação iniciaram-se em janeiro de 1949.

Essa nova fase da eletrificação da Rede Mineira de Viação iniciou-se com o trecho Belo Horizonte-Divinópolis, com 152 quilômetros de extensão. Ela feita adotando-se corrente contínua de 3000 volts, que tinha se tornado o padrão brasileiro para eletrificação ferroviária. O mesmo programa também incluiu a retomada das obras relativas à malfadada eletrificação entre Barra Mansa e Angra dos Reis, usando o antigo sistema de corrente contínua de 1500 volts que havia sido adotado pela antiga E.F. Oeste de Minas; contudo, a eletrificação nesse trecho nunca entrou em operação.

A energia elétrica necessária para as locomotivas elétricas era fornecida pela usina de Gafanhoto da CEMIG, onde havia um transformador trifásico de 2500 kVA da Rede Mineira de Viação que baixava a corrente trifásica de 88 para 33 kV, de onde saíam duas linhas de transmissão: uma para Cidade Industrial (próximo à Belo Horizonte) e outra para Divinópolis. Em Cidade Industrial havia outro ponto de alimentação ligado à rede de 6,6 kV da CEMIG, onde um transformador eleva a tensão para 33 kV, integrando essa energia ao sistema da R.M.V. O uso de duas tomadas de energia tinha como objetivo ampliar o nível de segurança do sistema.

Num arranjo inédito na história das eletrificações brasileiras desta vez os equipamentos usados foram distribuídos entre vários fornecedores. As subestações de 1500 kW, usando retificadores de vapor de mercúrio, foram fornecidas pela Brown-Boveri, tendo sido instaladas em Divinópolis, Azurita, Angicos e Eldorado. Posteriormente foi instalada uma subestação adicional em Betim para atender ao aumento da demanda de tráfego, especialmente dos trens unidade elétricos que serviam a capital mineira. Os postes de sustentação da linha de contato também eram de aroeira do sertão, mantendo a tradição do uso de postes pelas ferrovias brasileiras, como a Companhia Paulista e E.F. Oeste de Minas.

O sistema era operado por catorze locomotivas elétricas de 900 HP contínuos (ou 1071 HP unihorários), fornecidas pela firma inglesa Metropolitan-Vickers, que mais uma vez marcava presença no Brasil após ter implantado a fase inicial da eletrificação na E.F. Oeste de Minas e E.F. Central do Brasil. Essas máquinas chegaram ao Brasil entre o final de 1952 e o início de 1953, sendo idênticas às fornecidas à Rede de Viação Paraná-Santa Catarina. A tabela abaixo mostra alguns dados técnicos dessas locomotivas:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1952900-913B-B900Metropolitan-Vickers49,213,2301092-Sim

Estimava-se que a eletrificação proporcionasse uma redução de 86% nos custos relativos à tração, uma vez que o consumo de lenha implicava numa despesa de Cr$ 5.500.000 e o de energia elétrica em Cr$ 750.000.

O primeiro trem elétrico experimental só correu quase quatro anos depois do início das obras, em 12 de dezembro de 1952, tracionado por uma das novas locomotivas Metropolitan-Vickers. A inauguração oficial da eletrificação entre Belo Horizonte (estação Carlos Prates) e Divinópolis deu-se em 24 de março de 1953. A capacidade bruta de transporte de cargas nesse trecho foi elevada a 11.000 toneladas após esse melhoramento.

No mesmo ano o Congresso Nacional aprovou o pedido de rescisão do contrato de aluguel da Rede Mineira de Viação ao governo de Minas Gerais, passando o controle dessa ferrovia novamente ao Governo Federal. A nova administração continuou investindo em eletrificação: nessa mesma época foram iniciados os estudos para o prosseguimento da eletrificação no trecho Mindurí-Ribeirão Vermelho, numa extensão de 114 quilômetros. Para tanto foram reservados 10.000 kW de energia a ser produzida pela usina hidrelétrica de Itutinga, da CEMIG, visando ainda a extensão da eletrificação por mais 201 quilômetros, até Garças de Minas.

Em 1957 o processo de federalização ferroviária no Brasil se consolidou com a formação da Rede Ferroviária Federal S.A. - R.F.F.S.A., à qual a Rede Mineira de Viação foi incluída. Foi nessa época que se iniciou a dieselização da Rede Mineira de Viação, a qual passou a contar com locomotivas GL8, G8 e G12 da Electromotive Division da General Motors, máquinas robustas e de alto desempenho que passaram a rivalizar em potência e flexibilidade com a tração elétrica. O único senão era o fato do combustível consumido por essas máquinas ser importado.

O crescimento acentuado da população na região de Belo Horizonte já havia servido de motivação indireta para a implantação da eletrificação do trecho da Rede Mineira de Viação entre essa cidade e Divinópolis. Em 1957 esse crescimento populacional motivou a ferrovia a adquirir carros-motor elétricos da A.C.F. - American Car and Foundry Co., dos E.U.A., para aumentar a capacidade de seus serviços de trens suburbanos entre Belo Horizonte e Betim, cuja demanda era cada vez maior. Esses carros também foram usados para compor trens de passageiros entre Belo Horizonte e Divinópolis.

Em 1° de setembro de 1959 foi inaugurada uma subestação móvel de 1500 kW para reforçar o suprimento de energia elétrica aos trens que circulavam no trecho entre Belo Horizonte e Divinópolis. O equipamento elétrico foi importado da firma italiana Compagnia Generale di Elettricitá e montado no Brasil pela SADE - Sul Americana de Eletrificação S.A., tendo sido acondicionado um vagão fabricado pela SOMA - Fábrica Sorocabana de Material Ferroviário. A unidade, com capacidade de sobrecarga de 50% por duas horas e 200% por cinco minutos, operava automaticamente conforme a necessidade da demanda, desligando-se automaticamente quando não havia necessidade de seus serviços.

No final de 1960 foram entregues ao tráfego de locomotivas elétricas mais 114 quilômetros entre Ribeirão Vermelho e Mindurí, na antiga linha tronco da E.F. Oeste de Minas. Esse novo trecho requereu a instalação de três subestações de 1500 kW, também fornecidas pela Brown Boveri, em Carrancas (km 322), Itumirim (km 361) e Lavras (km 393). Infelizmente não se pôde aproveitar plenamente essa melhoria, uma vez que esse novo trecho foi eletrificado no sistema de 3000 volts, enquanto que a seção entre Mindurí e Barra Mansa não havia sido atualizado, continuando a operar com o obsoleto sistema de 1500 volts. Mindurí continuou sendo um ponto de quebra de tração, agora também entre locomotivas elétricas...

A necessidade de aumentar a capacidade dos trens de subúrbio em Belo Horizonte fez com que fosse feita nos anos 1960 a unificação física das antigas linhas da Rede Mineira de Viação e E.F. Central do Brasil que cortavam a capital mineira. Essa união deve ter sido facilitada pelo fato de ambas as ferrovias já terem sido incorporadas pela R.F.F.S.A.. Dessa forma as locomotivas elétricas passaram a tracionar trens de passageiros até a estação central de Belo Horizonte.

Os investimentos em eletrificação feitos pela Rede Mineira de Viação diminuíram muito a partir de então. A situação no trecho eletrificado em 1500 volts da antiga E.F. Oeste de Minas piorou bastante ao longo da década de 1960, com a progressiva imobilização de locomotivas, forçando a cessão de quatro locomotivas Metropolitan-Vickers de 3000 volts do novo sistema para operação no trecho entre Barra Mansa e Mindurí, após conversão das máquinas para 1500 volts. Em 1967 foram recebidas nove locomotivas elétricas Metropolitan-Vickers usadas, idênticas ao modelo fornecido em 1953 à R.M.V., provenientes da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina, que havia acabado de desativar sua eletrificação, a qual nunca chegou a cumprir plenamente seus objetivos. Por outro lado, esse reforço na eletrificação foi contrabalançado pelo fechamento da oficina da Metrovick do Brasil nas proximidades de Belo Horizonte, também ocorrido em 1968. Isso contribuiu para deixar a manutenção dessas locomotivas elétricas mais difícil, pois começaram a faltar sobressalentes e apoio técnico. O resultado foi baixa produtividade sob altos custos de manutenção, numa época em que as locomotivas diesel-elétricas estavam consolidando sua hegemonia. Para complicar a situação, nesse mesmo ano foi abandonada a tração elétrica nas antigas linhas de 1500 volts da E.F. Oeste de Minas, pois todas as suas locomotivas elétricas que operavam sob essa voltagem foram sucatadas.

Ainda assim a eletrificação ainda teve prestígio suficiente para retornar a esse trecho em 1971, quando finalmente seus equipamentos elétricos foram convertidos para operar sob corrente contínua de 3000 volts, unificando o padrão de eletrificação da antiga Rede Mineira de Viação, denominada agora Viação Férrea Centro-Oeste após sua fusão com a E.F. Goiás e E.F. Bahia-Minas em 1965. A tração elétrica no trecho Barra Mansa-Mindurí tornava-se novamente possível, usando-se as locomotivas Metropolitan-Vickers de 3000 volts adquiridas pela R.M.V. no início da década de 1950. No trecho entre Lavras e Ribeirão Vermelho circulavam trens de subúrbio tracionados pelos carros-motor A.C.F.; o Guia Levi de abril de 1970 registra três horários diários dessas composições.

Ao longo da década de 1970 os serviços de subúrbio entre Belo Horizonte e Betim, com 39 quilômetros de extensão, contavam com seis trens diários e um aos domingos e feriados. As principais paradas eram Belo Horizonte - Central (Praça Rui Barbosa), Carlos Prates, Eldorado, Bernardo Monteiro, Embiruçu, Ponto PTB e Betim, com paradas autorizadas em Feira dos Produtores, Gameleira, Novo Eldorado, Beatriz, Fazenda Embiruçu, Teresópolis, Alterosa, Betim Industrial e Sesi. O serviço era algo precário, com estações desconfortáveis, com plataformas menores que a extensão dos trens; as paradas autorizadas tinham padrão ainda pior; as plataformas eram de terra batida escoradas por pedaços de trilhos ou dormentes. A falta de cercas levava a grande evasão de renda. Os carros usados tinham procedência variada, inclusive alguns modernos, fabricados pela Pidner na década de 1970. Todos esses inconvenientes levavam à subutilização do serviço, cuja taxa de ocupação era de aproximadamente 50%.

A eletrificação da agora Viação Férrea Centro-Oeste estava mesmo em maré minguante. No início de 1982, em plena crise do petróleo e com o país à beira da moratória internacional devido aos enormes gastos de divisas com esse insumo, foi desativada a eletrificação no trecho entre Belo Horizonte e Divinópolis, provavelmente em função do início das obras do Trem Metropolitano de Belo Horizonte; os trens suburbanos restantes passaram a ser tracionados por locomotivas diesel-elétricas. No final de 1982 foi suprimida a eletrificação entre Barra Mansa e Ribeirão Vermelho. Seis locomotivas, os carros-motor A.C.F. e equipamentos elétricos de subestações foram transferidos para uso nas linhas da antiga Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro, nas proximidades de Salvador. Uma subestação móvel Siemens do sistema foi vendida à E.F. Campos do Jordão - a qual, por sinal, durante vários anos garimpou peças sobressalentes ao longo das antigas linhas eletrificadas da Rede Mineira de Viação... Felizmente a locomotiva elétrica MetroVick #918 foi preservada pela R.F.F.S.A., estando hoje posicionada na rotunda do museu ferroviário de São João del Rey, servindo como testemunha silenciosa de uma era de magnetos e milagres.




- Referências Consultadas


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Última Atualização: 06.04.2002

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